18.1.09

República dos Corvos


São Vicente, para ser São Vicente e entrar na História como entrou, teve necessidade de dois corvos para o acompanhar que, por sinal, lhe foram sempre fiéis até hoje. Ora, duma ave como esta, tão convivente e tão enigmática, conta-se muita coisa. A própria Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, depois de muitos rodeios, afirma que o corvo é velhaco e ladrão, e isto, bem entendido, com a devida consideração pela agudeza e pela independência no trato que toda a gente lhe reconhece. “Caguei para a Enciclopédia”, diz o Corvo. E para comprovar alça a cauda e, zás, despede um esguicho de caca esbranquiçada. Caca esbranquiçada numa criatura tão negra é que ninguém esperava. O corvo em questão chama-se Vicente. Puseram-lhe um nome de santo, que mais quer ele, mas nem assim se mostra lá muito reconhecido. Pertence a uma das últimas tascas de Lisboa, daquelas que antigamente, além do vinho, vendiam também carvão, pitrol e molhinhos de carqueja, mas isso foi há muitos anos, na idade do fogareiro e do candeeiro de chaminé, e nessa altura ainda ele não era nascido. Ou talvez fosse, com os corvos nunca se sabe. Há quem afirme que chegam a durar eternidades. Na porta ao lado da tasca estabeleceu-se há muito tempo uma mulher que vende ovos e criação, sentada numa cadeira de balouço. O Corvo conhece-a, por acaso até a visita. Diz-se que matou o marido com gemadas envenenadas, se é que ela alguma vez teve marido, mas de concreto o que se sabe e está à vista é que passa os dias amarrada à cadeira a fazer malha com um certo ar irado. Parece uma gata gorda de bigodes assanhados, uma bichana doméstica que preenche o tempo a dar à agulha e a contar um dois três laça, um dois três mate, para se esquecer de outros tempos. Mas isso não passa de aparência porque, coitada, o que a consome é aquele coração que Deus lhe deu, um coração tão grande e universal que não lhe cabe no corpo. Daí estar sempre no cadeirão a balouçar, a balouçar, como se procurasse dar ar ao peito ou, então, como se tomasse balanço para se projectar pelos ares, rumo a Deus Nosso Senhor.

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